Sem filha, sem pai

 

FOLHA DE S.PAULO                                                                      DOMINGO, 12 DE AGOSTO DE 2018  A3

 

TENDÊENCIAS/DEBATES

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Sem filha, sem pai

Jamais imaginei passar um Dia dos Pais sem Marielle

Antônio Francisco da Silva Neto

Aposentado e pai de Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro em 14 de março

Marielle sempre teve a chave da nossa casa. Quando a gente ouvia as passadas fortes dela subindo as escadas, já sentíamos a sua presença, já sabíamos que era ela chegando. Marielle não era mulher de passar despercebida; qualquer espaço que ocupava chamava a atenção com sua forma marcante de se colocar, suas iniciativas dominantes, sempre puxando a fila. Foi assim na nossa vida, foi assim na política institucional.

Jamais imaginei passar o segundo domingo de agosto, Dia dos Pais, sem minha filha Marielle Franco.

Desde seu nascimento, há 39 anos, comemoramos esse dia em família. Quase sempre depois da missa, ela perguntava: “Para onde vamos? Vamos almoçar fora ou fazer algum almoço especial em casa?. Muitas vezes ela já vinha com a resposta pronta. Ela era muito determinada, como sua mãe, Marinete, que com sua força moldou o arrojo e o caráter de Marielle e Anielle, sua irmã. As duas ainda me deram duas netas. Em casa, a voz marcante sempre foi a das mulheres.

Marielle era uma guerreira, uma leoa, que urrava e teimava em defender suas crias sem medo de nada. Ela era tão focada na defesa da vida dos outros que se preocupou menos com a sua.

Foi presa fácil na mira dos que a caçaram, dando fim a uma trajetória que vislumbrava brilhante. Mulher que não se curvava aos fatos covardes que seguem acontecendo no Rio de Janeiro, vitimando as mesmas pessoas nas mesmas comunidades de sempre. Lugares que ela ousou estar, defender e representar.

Minha filha já não está mais aqui para caminhar ao lado de familiares e amigos das vítimas da violência, que invariavelmente puderam contar co9m ela.

Agora, somos nós que contamos com eles; sentimos a presença de Marielle na força e na solidariedade que temos recebido do movimento de familiares de vítimas.

Apoio este, aliás que se estende à família de Anderson Gomes. Ele tinha sido pai recentemente, deixou filho e esposa, no mesmo 14 de março. Nós nos apoiamos e nos solidarizamos na mesma dor, especialmente neste Dia dos Pais. Eu, sem minha filha; o filho dele, sem pai.

Essa tragédia que aconteceu na nossa família vitimou Marielle no auge da sua vida. Às vezes a gente acha que ela está viajando e vai voltar. Vai entrar na nossa casa de forma radiante como semp0re. Suas passadas fortes pela escada vão nos acordar deste pesadelo. No fundo, sabemos que isso não vai acontecer.

O tempo não para, isso é fato. A vida continua. Mas precisamos, mais do que nunca, saber: quem mandou matar Marielle, quem matou Marielle e Anderson, e por que fizeram isso? Cinco meses sem respostas é tempo demais.