O QUE É O XADREZ?
É a luta entre dois cérebros – nas palavras de Emanuel Lasker, ex-campeão mundial.
É a pedra de toque do intelecto – na expressão de Goethe, o maior dos poetas alemães.
É o jogo cosmopolita e filosófico – de Paul Morphy.
É o rei dos jogos e o jogo dos reis.
É inigualável e insuperável por qualquer outro. As modalidades de suas partidas são inumeráveis, as combinações possíveis não têm número.
É de nobreza única porque concede a cada um dos partidários um número de elementos absolutamente igual em quantidade e força. É nobre porque é inteiramente aberto. Ambos os jogadores têm a mesma faculdade de analisar o que no memento se passa e o que se passará no futuro. É uma luta a peto nu de ambas as partes.
Para todos os ataques há defesas. É preciso somente ver, e, mais uma vez, ver.
No xadrez não há acasos a não ser os que dimanam do coeficiente enxadrístico do indivíduo pelo qual o jogo não pode ser responsabilizado.
É igualmente nobre porque todo ataque levado contra o rei adversário é anunciado – previne-se o adversário do perigo que o expoente de suas peças está na iminência de correr.
É de fascinação única. Quanto mais se joga, mais se quer jogar. Quanto mais se penetra em sua essência, em suas sutilezas, tanto mais encantado por ele se fica.
É um jogo de paciência e de cálculo.
O xadrez é um derivativo para os cérebros preocupados, um lenitivo para o struggle for life.
Nesta meditação profunda, nesta concentração intelectual durante a qual se combina, se calcula, se recombina e se recalcula, a abstração do próprio eu é completa.
Passam-se as horas e delas não se tem noção. Todas as vicissitudes da vida, todos os dissabores quotidianos esvaem-se por completo – a partida de xadrez exige a supressão de qualquer exteriorização.
O xadrez é de estética única, porque é a prática de uma arte sem igual.
Mas esta beleza somente surge quando se consegue a capacidade de analisar e sintetizar combinações fundamentadas sobre um número elevado de lances. É preciso jogar durante um lapso de tempo mais ou menos longo para se apanhar a concepção estética do xadrez.
Que satisfação se experimenta quando durante 6, 7, 8 ou mais lances se prossegue na execução de um plano, ditado por uma inspiração luminosa, contra a qual o adversário esgota seus recursos improficuamente!
Como é belo apreciar quando o adversário bate contra nossas posições uma vez, duas vezes, três vezes e prevemos perfeitamente se conseguirá ou não o seu desiderato!
Como é bela a análise da grande quantidade de combinações em dada posição para se achar que, quase sempre, uma só conduz ao fim colimado!
Como é belo poder-se seguir as pegadas de um plano, opor-lhe empecilhos e aparar seu golpe fatal!
Como é linda a observância deste terçar de armas entre dois cérebros, secundada por dois temperamentos ou da luta entre um cérebro e um caráter!
Querer classificar o xadrez como uma ciência, no entanto, seria um exagero, um absurdo mesmo.
Uma ciência é fundamental sobre leis naturais intangíveis, imutáveis e inamovíveis.
As leis do xadrez foram concebidas pela imaginação humana arbitrariamente, a seu belo prazer; assim como são estas leis, poderiam ser outras.
Basta dirigir nossas vistas sobre seu desenvolvimento histórico para verificarmos que as leis, tais quais as que hoje respeitamos, não são as mesmas das épocas passadas. Nem, tampouco, o número de peças, sua disposição e sua marcha não são o mesmo.
Verdade é que a partida de xadrez recebeu seu estigma por uma relação casual. Uma série de lances determina e condiciona uma outra. Todos eles estão intimamente conexos. Mas esta relação causal, esta conexão estreita dos lances de ambas as parte,s estão sujeitas a variações tão multiformes que não se vive o bastante para poder acontecer de serem jogadas duas partidas absolutamente iguais.
Se assim não fosse, se a determinante causal não se subtraísse inteiramente à influência individual, o xadrez perderia imediatamente sua prerrogativa de rei dos jogos, de primus inter pares.
Sua estética, sua nobreza e sua fascinação seriam sacrificadas e o xadrez ficaria reduzido a um simples problema matemático de solução pré-determinada e imutável.
Mas como simples jogo, o fator decisivo é o coeficiente individual, a maior ou menor capacidade de concentração espiritual (mental), a maior ou menor capacidade analítica das posições, atendendo às funções estáticas e ao dinamismo dos elementos em foco, o domínio mais ou menos perfeito do sistema nervoso e, como sequela, a maior ou menor soma de perseverança, tenacidade e calma postas em jogo.
Como tais fatores são imprescindíveis para fazer surgir o xadrez em toda sua amplitude, este se torna um excelente recurso de cultura cerebral sistemática que culmina no jogar uma ou mais partidas sem ver o tabuleiro.
O xadrez também reflete-se acentuada e poderosamente sobre o modo de vida do indivíduo.
Torna-o prudente – antes de praticar um ato analisará suas prováveis consequências sob múltiplos prismas; torna-o perseverante – ao executar um ato, tendo previamente procurado, apanhar seus resultados, não esmorecerá com facilidade, porque prevê os diversos acidentes que podem sobrevir e conhece os meios para superá-los: torna-o empreendedor – quando falha uma tática, empregará outra; torna-o paciente – quando não consegue seu fim em dada oportunidade, aguardará outra; e torna-o cordato – habita-o a vencer e a ser vencido.
Do mesmo modo o xadrez é o eco do temperamento individual.
O nervoso, não podendo ainda refrear seus impulsos, agirá com precisão no início. Dará belos golpes ditados pela inspiração do momento, mas, no podendo ainda dominar seus nervos, estes golpes serão quase sempre, somente belos na aparência – na realidade falhos de base sólida, assentada sobre madura reflexão. Sacrificará posições boas pela precipitação nos momentos críticos que justamente demandam toda calma.
O indivíduo calmo por índole, pacientemente, pedra por pedra, construirá suas posições de cimento armado contra as quais se pulverizam os mais violentos ataques e se exaurem as mais possantes forças materiais e mentais.
O indivíduo ativo ou dinâmico baterá em todas as portas, tateará por todos os lados, sondará por todos os recantos para ver se consegue insinuar nas fileiras inimigas uma cunha por pequena que seja.
A timidez e o medo refletem-se sobre o modo de jogar, traduzindo-se por uma constante preocupação de abrigo e falta de iniciativa.
O audacioso ou aventureiro arroja-se a sacrifícios de peças, provoca posições complicadíssimas, enovela-se com o adversário, abeira-se do precipício e, no último momento, atira-o ou a ele é atirado.
Não é, pois, sem razão que Lasker diz que no xadrez também se joga em parte o caráter.
Muito interessante é observar as oscilações, as flutuações de altos e baixos que ocorrem no decurso de uma partida.
Um simples lance pode modificar visceralmente as probabilidades de vitória ou derrota. Um movimento bem calculado é feliz é capaz de, paulatinamente, fazer retroceder todo o ataque que nos manteve em sérias apreensões, destruir todos os planos em execução e dar vazão a contra-ataques destinados a arrasar posições inimigas até então, aparentemente inabaláveis.
Por outro lado, um lance mal madurado dá margens a posições dificílimas das quais se poderá escapulir – talvez, mas, quase sempre, deixando algumas penas.
A partida de xadrez é uma cadeia de lances intimamente conexos pela relação causal.
Um elo que se fenda ou se rompa completamente pode ter em consequência a ruptura do conjunto.
Felizmente estes acidentes, que podem sobrevir em uma partida, são, naturalmente, extensivos ao outro, dando assim, muitas vezes, oportunidade para restabelecer ou salvar a situação, o que é bastante consolador.
Promptuario de Xadrez – Guido Straube – Curitiba, 1929 – Empreza Graphica Paranaense